(1886).
A quem confiar minha tristeza?
Crepúsculo vespertino. Uma neve úmida, em grandes flocos, remoinha preguiçosa junto aos
lampiões recém-acesos, cobrindo com uma camada fina e macia os telhados das casas, os dorsos
dos cavalos, os ombros das pessoas, os chapéus. O cocheiro Iona Potapov está completamente
branco, como um fantasma. Encolhido o mais que pode se encolher um corpo vivo, está sentado na
boleia, sem se mover. Tem-se a impressão de que, mesmo que caísse sobre ele um montão de
neve, não consideraria necessário sacudi-la... Seu rocim está igualmente branco e imóvel. Graças a
sua imobilidade, à angulosidade das formas e à perpendicularidade de estaca de suas patas, parece
mesmo, de perto, um cavalinho de pão-de-ló de um copeque. Seguramente, ele está imerso em
meditação
Não pode deixar de meditar quem foi arrancado do arado, da paisagem cinzenta e familiar, e atirado
nessa voragem, repleta de luzes monstruosas, de um barulho incessante e de gente correndo...
Faz muito tempo que Iona e seu rocim não se mexem do lugar. Saíram de casa ainda antes do
jantar, e, até agora, não apareceu trabalho. Mas, eis que a treva noturna desce sobre a cidade. A
palidez das luzes dos lampiões cede lugar a cores vivas e a confusão das ruas torna-se mais
barulhenta.
- Cocheiro, para a Víborgskaia! - ouve Iona. - Cocheiro!
Estremece e vê, através das pestanas cobertas de neve, um militar de capote com capuz.
- Para a Viborgskaia! - repete o militar. - Está dormindo? Para a Víborgskaia!
Em sinal de consentimento, Iona puxa as rédeas, e a neve cai em camadas de seus ombros e do
dorso do cavalo...
O militar senta-se no trenó. O cocheiro faz ruído com os lábios, estende o pescoço à feição de cisne,
ergue-se um pouco e agita o chicote, mais por hábito que por necessidade. O cavalinho estica
também o pescoço, entorta as pernas, que parecem estacas, e desloca-se com indecisão...
- Onde vai, demônio?! - ouve, logo depois, Iona exclamações partidas da massa escura de gente,
que se desloca em ambos os sentidos. - Para onde te empurram os diabos? Mantenha-se à direita!
- Não sabe dirigir! Olha a direita - zanga-se o militar.
O cocheiro de uma carruagem solta impropérios; um transeunte, que atravessou a rua correndo e
chocou-se com o ombro contra a cara do rocim, lança um olhar rancoroso e sacode a neve da
manga. Na boleia, Iona parece sentado sobre alfinetes e aponta com os cotovelos para os lados;
seus olhos tontos perpassam pelas coisas, como se não compreendesse onde se encontra e o que
está fazendo ali.
- Que gente canalha! - graceja o militar. - Eles se esforçam
em chocar-se contra você ou cair embaixo do cavalo.
Combinaram isso.
Iona volta-se para o passageiro e move os lábios...
Sem dúvida, quer dizer algo, mas apenas uns sons vagos lhe
saem da garganta.
- O quê? - pergunta o militar.
Iona torce a boca num sorriso, faz um esforço com a garganta
e cicia:
- Pois é, meu senhor, assim é... perdi um filho esta semana.
- Hum!... De que foi que morreu?
Iona volta todo o corpo na direção do passageiro e diz:
- Quem é que pode saber! Acho que foi de febre... Passou
três dias no hospital e morreu... Deus quis.
- Dá a volta, diabo! - ressoa nas trevas uma voz. - Não está
mais enxergando, cachorro velho? É com os olhos que tem que olhar!
- Anda, anda... - diz o passageiro. - Assim, não chegamos
nem amanhã. Mais depressa!
O cocheiro estica novamente o pescoço, ergue-se um pouco e
agita o chicote, com uma graciosidade pesada. Depois, torna a olhar algumas
vezes para o passageiro, mas este fechou os olhos e parece pouco disposto a
ouvir. Depois de deixá-lo na Víborgskaia, pára diante de uma taverna,
encurva-se sobre a boleia e fica novamente imóvel... A neve molhada torna a
pintá-lo de branco, juntamente com o rocim. Decorre uma hora... outra...
Três jovens passam pela calçada, fazendo muito barulho com
as galochas e trocando impropérios: dois deles são altos e magros, o terceiro é
pequeno e corcunda.
- Cocheiro, para a Ponte Politzéiski! - grita o corcunda,
com voz surda. - Damos vinte copeques... os três!
Iona sacode as rédeas e faz ruído com os lábios. Vinte copeques são um preço inadequado, mas,
agora, pouco lhe importa o preço... Tanto faz seja um rublo ou cinco copeques, contanto que haja
passageiros... Empurrando-se e soltando palavrões, os jovens acercam-se do trenó e sobem para
os assentos, os três ao mesmo tempo. Começam a discutir a questão: dois deles irão sentados, e quem vai ficar de pé?
Depois de uma longa troca de insultos, manhas e recriminações,
chegam à conclusão de que o corcunda é quem deve ficar de pé, por ser o menor.
- Bem, faz o cavalo andar! - grita com voz trêmula o
corcunda, ajeitando-se de pé e soprando no pescoço de Iona. - Dá nele! Que
chapéu você tem, irmão! Não se encontra um pior em toda
Petersburgo...
- Hi-i... hi-i... - ri Iona. - Assim é...
- Ora, você assim é, bate no cavalo! Vai andar desse jeito o
tempo todo? Sim? E se eu te torcer o pescoço?
- Estou com a cabeça estalando... - diz um dos moços compridos.
- Ontem, em casa dos Dukmassov, eu e Vaska(2) tornamos quatro garrafas de
conhaque.
Não compreendo para que mentir! - irrita-se o outro moço
comprido. - Mente como um animal.
- Que Deus me castigue, é verdade...
- Tão verdade como um piolho tossindo.
- Hi-i! - ri Iona entre dentes. - Que senhores alegres!
- Irra, com todos os diabos!... - indigna-se o corcunda. -
Você vai andar ou não, velha peste? É assim que se anda? Estala o chicote no
cavalo! Eh, diabo! Eh! Dá nele!
Iona sente, atrás de si, o corpo agitado e a voz trêmula do
corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê gente, e o sentimento de
solidão começa, pouco a pouco, a deixar-lhe o peito. O corcunda continua os
impropérios e, por fim, engasga com um insulto rebuscado, descomunal, e desanda
a tossir. Os moços compridos começam a falar de uma certa Nadiejda Pietrovna.
Iona volta a cabeça para olhá-los. Aproveitando uma pausa curta, olha mais uma
vez e balbucia:
- Esta semana... assim, perdi meu filho!
- Todos vamos morrer. - suspira o corcunda, enxugando os
lábios, após o acesso de tosse. - Bem, bate nele, bate nele! Minha gente,
decididamente, não posso continuar andando assim! Esta corrida não acaba mais?
- Você deve animá-lo um pouco... umas pancadas no pescoço!
- Está ouvindo, velha peste? Vou te moer o pescoço de
pancada! Não se pode fazer cerimônia com gente como você, senão é melhor andar
a pé! Está ouvindo, Zmiéi Gorínitch(3)? Ou você não se importa com o que a
gente diz?
E Iona ouve, mais que sente, os sons de uma pancada no
pescoço.
- Hi-i... - ri ele. - Senhores alegres... que Deus lhes dê
saúde!
- Cocheiro, você é casado? - pergunta um dos compridos.
Eu? Hi-i... que senhores alegres! Agora, só tenho uma
mulher, a terra fria... Hi-ho-ho... O túmulo, quer dizer!... Meu filho morreu,
e eu continuo vivo... Coisa esquisita, a morte errou de porta... Em vez de vir
me buscar, foi procurar o filho...
E Iona volta-se, para contar como lhe morreu o filho, mas,
nesse momento, o corcunda solta um suspiro de alívio e declara que, graças a
Deus, chegaram ao destino. Tendo recebido vinte copeques, Iona fica por muito
tempo olhando os pândegos, que vão desaparecendo no escuro saguão. Está
novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele... A angústia que amainara
por algum tempo torna a aparecer, inflando-lhe o peito com redobrada força. Os
olhos de Iona correm, inquietos e sofredores, pela multidão que se agita de
ambos os lados da rua: não haverá, entre esses milhares de pessoas, uma ao
menos que possa ouvi-lo? Mas a multidão corre, sem reparar nele, nem na sua
angústia... Uma angústia imensa, que não conhece fronteiras. Dá a impressão de que,
se o peito de Iona estourasse e dele fluísse para fora aquela angústia, daria
para inundar o mundo e, no entanto, não se pode vê-la. Conseguiu caber numa
casca tão insignificante, que não se pode percebê-la mesmo de dia, com muita
luz...
Iona vê o zelador de uma casa, carregando um embrulho, e
resolve travar conversa.
- Que horas são, meu caro? - pergunta.
- Mais de nove... Por que você parou aqui? Passa!
Iona afasta-se alguns passos, torce o corpo e entrega-se à
angústia... Considera já inútil dirigir-se às pessoas. Mas, decorridos menos de
cinco minutos, endireita-se, sacode a cabeça, como se houvesse sentido uma dor
aguda e puxa as rédeas... Não pode mais.
"Para casa", pensa, "para casa".
E o cavalinho, como se tivesse compreendido seu pensamento,
começa a trotar ligeiramente. Uma hora e meia depois, Iona está sentado junto
ao fogão grande e sujo. Há gente roncando em cima do fogão, no chão e sobre os
bancos. O ar é abafado, sufocante... Iona olha para os que dormem, coça a
cabeça e lamenta haver voltado tão cedo para casa...
"Não ganhei nem para a aveia", pensa. "Daí
essa angústia. Uma pessoa que conhece o ofício... que está bem alimentada e tem
o cavalo bem nutrido também, está sempre calma..."
Num dos cantos, levanta-se um jovem cocheiro, funga,
sonolento, e arrasta-se para o balde d'água.
- Ficou com sede? - pergunta Iona.
- Com sede, sim!
- Bem... Que lhe faça proveito... Pois é, irmão, e eu perdi
um filho... Está ouvindo? Foi esta semana, no hospital... Que coisa!
Iona procura ver o efeito que causaram suas palavras, mas não vê nada. O jovem se cobriu até a
cabeça e já está dormindo. O velho suspira e se coça... Assim como o jovem quis beber, assim ele quer falar. Vai fazer uma semana que lhe morreu o filho e ele ainda não conversou direito com
alguém sobre aquilo... É preciso falar com método, lentamente...
É preciso contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que
disse antes de morrer e como morreu... É preciso descrever o enterro e a ida ao
hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia... É
preciso falar sobre ela também... De quantas coisas mais poderia falar agora? O
ouvinte deve soltar exclamações, suspirar, lamentar... E é ainda melhor falar
com mulheres. São umas bobas, mas desandam a chorar depois de duas palavras.
"É bom ir ver o cavalo", pensa Iona. "Sempre
há tempo para dormir..."
Veste-se e vai para a cocheira, onde está seu cavalo. Iona
pensa sobre a aveia, o feno, o tempo... Estando sozinho, não pode pensar no
filho... Pode-se falar sobre ele com alguém, mas pensar nele sozinho, desenhar
mentalmente sua imagem, dá um medo insuportável...
Está mastigando? - pergunta Iona ao cavalo, vendo seus olhos
brilhantes. - Ora, mastiga, mastiga...
Se não ganhamos para a aveia, vamos comer feno... Sim... Já
estou velho para trabalhar de cocheiro... O filho é que devia trabalhar, não
eu... Era um cocheiro de verdade... Só faltou viver mais...
Iona permanece algum tempo em silêncio e prossegue:
- Assim é, irmão, minha egüinha... Não existe mais Kuzmá
Iônitch... Foi-se para o outro mundo...
Morreu assim, por nada... Agora, vamos dizer, você tem um
potrinho, que é teu filho... E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho
vai para o outro mundo... Dá pena, não é verdade?
O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu
amo... Iona anima-se e conta-lhe tudo...
(1). Versículo de um canto da Igreja Russa.
(2). Diminutivo de Vassíli.
(3). Nas lendas russas, um dragão que repreeenta o mal. No entanto, o nome Gorínitch dá também
ideia de tristeza, aflição
Atividade
1) Justifique o título deste conto.
2) Descreva Iona relatando o maior número possível de características.
3) Relacione as características do ambiente com a Angústia de Iona.
4) Explique o que simboliza o filho perdido para a vida de Iona justificando com argumentos apresentados no conto.
5) “na boleia, Iona parece sentado sobre alfinetes”.
Cite motivos pelos quais o narrador faz tal comentário.
6) Defina com palavras os sentimentos de Iona. Justifique cada palavra que você escolheu.
7) É possível perceber uma clara diferenciação entre as classes sociais no conto. Explique esta afirmação e comprove sua resposta com passagens do texto.
8) Qual era a “sede” de Iona?