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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Capitães da Areia

 

Capitães da Areia
(…)
Os acontecimentos se precipitaram, porque Raul teve que fazer uma viagem ao Rio de Janeiro, a negócios importantes de advocacia. E o Sem-Pernas achou que não havia melhor ocasião para o assalto.
Na tarde em que se foi, mirou a casa toda, acariciou o gato Berloque, conversou com a criada, olhou os livros de gravura. Depois foi ao quarto de dona Ester, disse que ia até o Campo Grande passear. Ela então lhe contou que Raul traria uma bicicleta do Rio para ele e então todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande, em vez de passear a pé. O Sem-Pernas baixou os olhos, mas antes de sair veio até dona Ester e a beijou. Era a primeira vez que a beijava, e ela ficou muito alegre. Ele disse baixinho, arrancando as palavras de dentro de si:
– A senhora é muito boa. Eu nunca vou esquecer…
Saiu e não voltou. Essa noite dormiu no seu canto no trapiche. Pedro Bala tinha ido com um grupo para a casa. Os outros tinham rodeado o Sem-Pernas, admirando suas roupas, seu cabelo assentado, o perfume que evolava do seu corpo. Mas o Sem-Pernas meteu o braço em um, foi resmungando para seu canto. E ali ficou mordendo as unhas, sem dormir, angustiado, até que Pedro Bala voltou com os outros, trazendo os resultados do assalto. Comunicou ao Sem-Pernas que fora a coisa mais canja do mundo, que ninguém dera fé na casa, que todos tinham continuado dormindo. Talvez que nem no dia seguinte descobrissem o roubo. E mostrava os objetos de ouro e de prata:
– Amanhã Gonzales dá uma dinheirama por isso…
O Sem-Pernas fechava os olhos para não ver. Depois que todos foram dormir, ele se aproximou do Gato:
– Tu quer fazer um negócio comigo?
– Que é?
– Eu dou essa roupa, tu me dá a sua…
O Gato olhou cheio de espanto. A sua roupa era a melhor do grupo, sem dúvida. Mas era roupa velha, estava muito longe de valer a boa roupa de casimira que o Sem-Pernas vestia. “Tá doido”, pensou o Gato enquanto respondia:
– Se topo? Nem se pergunta.
Trocaram a roupa. O Sem-Pernas voltou ao seu canto, procurou dormir.
Na rua vinha dr. Raul com dois guardas. Eram os mesmos soldados que o haviam espancado na cadeia. O Sem-Pernas corria, mas doutor Raul o apontava e os soldados o levavam para a mesma sala. A cena era a mesma de sempre: os soldados que se divertiam a fazê-lo correr com sua perna capengando e o espancavam e o homem de colete que ria. Só que na sala estava também dona Ester, que o olhava com os olhos tristes e dizia que ele não era mais seu filho, era um ladrão. E os olhos de dona Ester o faziam sofrer mais que as pancadas dos soldados, mais que o riso brutal do homem. Acordou molhado de suor, fugiu da noite do trapiche, a madrugada o encontrou vagando no areal.
No outro dia, à noite, Pedro Bala viera trazer o dinheiro da sua parte no furto. Mas o Sem-Pernas o recusou sem dar explicações. Depois Volta Seca chegou com um jornal que trazia notícias de Lampião. Professor leu a notícia para Volta Seca e ficou vendo as outras coisas que o jornal trazia. Então chamou:
– Sem-Pernas! Sem-Pernas!
O Sem-Pernas veio. Outros vieram com ele e formaram um círculo. Professor disse:
– Isso aqui é com tu, Sem-Pernas…
E leu uma notícia no jornal:
Ontem desapareceu da casa número… da rua…, Graça, um filho dos donos da casa, chamado Augusto. Deve ter se perdido na cidade que pouco conhecia. É coxo de uma perna, tem treze anos de idade, é muito tímido, veste roupa de casimira cinza. A polícia o procura para o entregar aos seus pais aflitos, mas até agora não o encontrou. A família gratificará bem quem der notícias do pequeno Augusto e o conduza a sua casa.
O Sem-Pernas ficou calado. Mordia o lábio. Professor disse:
– Ainda não descobriram o furto…
Sem-Pernas fez que sim com a cabeça. Quando descobrissem o furto não o procurariam mais como a um filho desaparecido. Barandão fez uma cara de riso e gritou:
– Tua família tá te procurando, Sem-Pernas. Tua mamãe tá te procurando pra dar de mamar a tu…
Mas não disse mais nada, porque o Sem-Pernas já estava em cima dele e levantava o punhal. E esfaquearia sem dúvida o negrinho se João Grande e Volta Seca não o tirassem de cima dele. Barandão saiu amedrontado. O Sem-Pernas foi indo para o seu canto, um olhar de ódio para todos. Pedro Bala foi atrás dele, botou a mão em seu ombro:
– São capazes de não descobrir nunca o roubo, Sem-Pernas. Nunca saber de você… Não se importe, não.
– Quando doutor Raul chegar vão saber…
E rebentou em soluços, que deixaram os Capitães da Areia estupefatos. Só Pedro Bala e o Professor compreendiam, e este abanava as mãos porque não podia fazer nada. Pedro Bala puxava uma conversa comprida sobre um assunto muito diferente. Lá fora o vento corria sobre a areia e seu ruído era como uma queixa.

AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 127-130.

Capítulo II – O emplasto

Capítulo II – O emplasto
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Em: COUTINHO, Afrânio (Org.). Machado de Assis: obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. v. 1. p. 514-515.